Um encontro com Matilde Campilho

Conheci Matilde Campilho, escritora contemporânea portuguesa, através dos Reels nas redes sociais e costumava gostar do que me era apresentado naquele formato. No entanto, fui pega de surpresa ao me deparar com seus livros. Não conseguia gostar da mesma forma como gostava dos vídeos. Li, reli, parecia que alguma coisa “não batia”. Até que fui estudá-la num dos territórios poéticos, oficina oferecida pela escritora Mell Renault.
Durante os encontros descobri que a poesia da Matilde tem o diário de bordo como parte integrante de sua composição. Enquanto caminhava pelas ruas do Rio de Janeiro, ela registrava em áudios suas impressões sobre o que via, a fim de compartilhar com seus amigos que estavam em Portugal. Assim, nascia uma poesia de trânsito, em constante movimento e em fluxo de consciência.  Os arranjos temáticos perpassam pela sua biografia. Ela coloca sua experiência em movimento de poesia, resgatando a tradição do eu lírico no poema. Sua poética nasce da fala e tem esse tom imediato, imagens do presente, fusão de gêneros, sensação de atualidade, registro que não se apega às formas tradicionais, itinerários híbridos.
Entendi o que “não batia”. Era o suporte. O formato livro não dá conta dos poemas em prosa da Matilde. Na fluidez do verso livre que se derrama, nas bricolagens, nas partituras emocionais e na paisagem, o poema se faz enquanto realidade que interfere na invenção e a invenção atravessa a realidade. Se estivéssemos no teatro, eu diria que ela quebra a quarta parede e nos coloca dentro dessa conversa entre ela e seu interlocutor. Sua poesia é intima, confessional e cotidiana. O poema se insere no acontecimento da vida, a vida se insere no poema, ele é um mosaico de impressões e sensações.

Você já leu um poema em fluxo? Enquanto estudava a Matilde Campilho, fiz a minha experimentação.

I
São quase cinco da tarde
o tempo começa a nublar
a música da casa vizinha ultrapassa os portais da minha janela e me fazem companhia nesta hora
sentada na cama entre cadernos, livros e canetas
deixo meus olhos catarem pelo chão e pelas paredes deste quarto algum rastro de poesia
que justifique esse derrame sobre a folha
essa ânsia no estômago
esse gosto agridoce que se espalha pela boca
mas nada acontece
a água esquenta o café esfria
entre um gole de um e outro
o vento indelicado abre a porta
a cabeça voa
tento me lembrar das palavras que me despertaram às seis e meia da manhã
é tarde, elas se foram.
(Flávia Joss, outubro de 2023)

II
Explicação do Sopro

Século XXI. Certos homens se fecham em quartos de hotel porque nos lugares anônimos é muito possível ficar encostado numa parede branca vendo a água correr no chão do chuveiro. Dois rapazinhos pegam as bicicletas e pedalam quatrocentos e vinte quilômetros até achar a costa. Ao alcançá-la, tiram suas roupas e não mergulham: só encostam a zona lombar na areia e repetem até ao infinito a ladainha da tabuada do sete. Um bombeiro termina seu turno de vinte e quatro horas e entra no boteco junto à estátua de São Tarso. Pede um conjunto de sete pães de queijo e nos espaços entre cada um dos pães ele fica procurando por algum pedaço da túnica de Deus. O motorista do ônibus sabe perfeitamente que dentro da mala da senhora de rosto limpo tem uma caixa de joias que contém uma caixa de medicamentos que contém uma caixa de anel que contém uma bala. O tocador de kalimba está muito consciente de que hoje o mantra nasce da mistura de um cântico de procissão com o latir do cachorro, e está consciente também de que todo o desenho acha sua acústica perfeita nas pequenas eremitas. Aquele que pinta a natureza, o ladrão de ossos, sabe que deve empreender seu trabalho em posição horizontal, de corpo muito junto ao chão. E se por acaso o observarmos no processo por mais de sete minutos, podemos reparar que sua caixa torácica constantemente toca a tela, sempre na mesma cadência. A moça de vinte e sete anos ainda está sentada ao toucador, de frente para o próprio rosto, absolutamente indecisa sobre qual dos objetos escolher. Entre o batom alaranjado, a carabina calibre 12, o pó de arroz e o crucifixo em miniatura vai uma distância de dois passos a galope.
(CAMPILHO, Matilde. Jóquei, Editora 34, 2014)

Deixe um comentário


Descubra mais sobre Mapa das Letras

Assine para receber os posts mais recentes por e-mail.

3 respostas para “Por Flávia Joss- Poesia na mesa”.

  1. Avatar de Renata Toledo
    Renata Toledo

    não conhecia poesia em trânsito. Adorei o fato de ser cotidiana. Gosto disso

    Curtido por 1 pessoa

  2. Eu tenho um texto publicado no meu Instagram com o título Pela janela da van, não sei se encaixa como um poema em fluxo, mas fez todo sentido para mim essa definição, porque escrevi direto no aplicativo enquanto atrevessava a Ponte Rio-Niterói.

    Curtir

  3. Percebo em alguns textos que existem poemas que funcionam no papel, outros que perdem força quando são declamados. Qual suporte que funciona? Muito interessante pensarmos sobre isso!

    Curtir

Deixe um comentário

Tendência

Descubra mais sobre Mapa das Letras

Assine agora mesmo para continuar lendo e ter acesso ao arquivo completo.

Continue lendo